terça-feira, 10 de julho de 2012

BATURITÉ


Monte Mor ficou maior¹
                                                                                                                                                               por Batista de Lima

Baturité é uma cidade de passagem. É um portal para quem vai à Capital, é uma porteira aberta para quem vai ao sertão. Cidade bonita, de prédios históricos, a gente tem vontade de ficar, mas apenas passa. De Primeiro era o trem. Parava, apitava, tinha uva pelas janelas, água de quartinha, vendida no copo e, de graça, a paisagem. Uma cidade histórica enfeitando um pé de serra. Tudo verde, tudo meio misterioso.

Quando o trem cansou, descobriu-se a serra, não a cidade. Suas filhas cresceram mais que a mãe, na procura dos turistas. Guaramiranga, Pacoti, Mulungu, Aratuba, todas ficaram mais procuradas. Baturité continua sendo uma cidade de passagem. Acontece que lendo "Monte Mor", de Almir Gomes de Castro, você fica na velha cidade. Aí não há trem que lhe carregue, não há Guaramiranga que lhe atraia. Esse romance de 150 páginas abre 150 portas para a cidade.

Monte Mor era o nome antigo de Baturité. Sua economia primeira vinha da produção do café. A cidade exportava café. A serra era o esteio na produção daquele ouro em grãos que ia fumegar em bules e xícaras por grande parte deste Brasil do Norte. Por trás dessa produção foi-se criando uma mitologia frutificada na relação dos grandes fazendeiros com levas de trabalhadores anônimos que passaram suas vidas embrenhados nas matas, no cultivo e na colheita do precioso produto.

Almir Gomes de Castro, médico e escritor já de renome, com uma produção de mais de dez livros publicados, vasculhou as entranhas daquele mundo serrano e nos trouxe como brinde uma narrativa de fatos reais e encantamentos. Esse seu livro, das Edições Livro Técnico, de 2010, oscila entre história e ficção, entre o sacro e o profano, o mandatário e o desvalido, o crente e o agnóstico. Tudo é binário, extremado, dicotômico. Só há duas classes sociais, a dos ricos e a dos pobres. De um lado, o dono da terra e das pessoas; do outro, o dono das almas.

Ramalho e Abdias são os donos das terras e das pessoas dos trabalhadores. Padre Teixeira o dono das almas. Do entrechoque entre a ameaçadora religião e o arbítrio do coronelismo surge uma vertente de crendices, verdadeira catarse de uma casta de desvalidos semi-escravos, resquícios de sebastianistas produzidos pelo abandono. O autor perscruta nessas figuras, uma religiosidade feita de penitências, uma sexualidade marcada pela espontaneidade da natureza e os devaneios da decrepitude humana.

O enredo perde seu pedestal diante da descrição da serra, da flora, da fauna e dos tipos que vão aparecendo. Entre esses tipos estão os dois coronéis: Ramalho, correto e piedoso, e Abdias, encarnação do mal e predestinado às caldeiras dos infernos. Na esteira dos dois estão récuas de trabalhadores descrentes ou fanáticos que acompanharam as tendências dos patrões. Como pano de fundo, uma serra com seus precipícios e acidentes corriqueiros, como que uma vingança da natureza contra a invasão humana, o progresso, o desmatamento, o desrespeito à coisa natural.

Por falar em desmatamento, é bom lembrar que em torno da década de 1850, o Padre Verdeixa, Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, vulgo Canoa Doida, já verberava na Assembleia Provincial, onde era Deputado, contra o desmatamento daquela serra para o plantio de café. O livro de Almir Gomes de Castro mostra o apogeu dessa produção cafeeira, mas não menciona a devastação da serra que ainda continua, por conta da construção de mansões de veraneio, da elite fortalezense. Mas "Monte Mor" traz um verdadeiro apanhado dos elementos naturais que constituem uma antropologia da região.

A devastação da serra não é explicitada por Almir Gomes de Castro. Entretanto, metaforicamente, ele provoca o surgimento simbólico de um grande afundamento na serra, que começa a engolir as pessoas. É uma cratera que atrai para o seu interior aqueles que mais vilanias provocam no enredo. Se a leitura for feita a partir de um entendimento da subjetividade desse abismo, entende-se perfeitamente a virulência crítica do autor sobre aqueles que vilipendiam a natureza, devastando sem escrúpulos o meio ambiente. A serra não perdoa os que a torturam.

Ao final da leitura desse romance de Almir Gomes de Castro, fica patenteado para o leitor, o conhecimento que esse escritor tem da região que retrata. Ele opera uma reconstrução de uma Monte Mor nos moldes que um dia existiu, girando em torno da produção do café. Depois, ele estilisticamente mostra primor na elaboração dos diálogos e, mais ainda, possui o domínio da frase, uma sintaxe de quem é familiarizado com o código linguístico. Conhecedor da memória de Baturité, sua narrativa é um legado para as novas gerações, que menosprezam a história de suas gentes, desconhecem suas origens. Com esse livro, Almir Gomes de Castro não só abriu as portas de Baturité, mas foi com sua narrativa que Monte Mor ficou maior. 


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¹ Fonte: Diário do Nordeste, de 12.06.2012.

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