terça-feira, 29 de novembro de 2011

DE BIBLIOTECAS E LEITORES¹


(...)
Fascinado desde a infância por animais, o escritor argentino, Jorge Luis Borges em suas visitas ao zoológico quando menino, só se convencia a ir embora quando ameaçado de ficar sem os livros.
Para Carlos Drummond de Andrade, livro e história de vida se equivalem:
(...)
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história de Robinson Crusoé,
Comprida história que não acaba mais.
(...)
E eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
                                                                                                 (Andrade, 1978, p.3-4)

Livros e leituras se constroem, pois, ora como imagens, ora como objeto físico de prazer, mas sempre como promessa de viagens. Este é o caso do texto de Ziraldo em que personagens de contos de fada tradicionais se armam para libertar uma borboleta falsamente presa entre as páginas. Tratado inclusive na sua materialidade, o leitor pode navegar “nas ondas” da leitura toda vez que abre um livro:

- nós viemos libertar você, tirar esses grampos que te prendem a este livro.
- para você voar... voar...
E a borboleta falou:
- Eu não estou presa!
(...)
- Eu não estou presa, porque cada vez que uma menina – que gosta do Gato-de-Botas, por exemplo – abre este livro e move as suas páginas, eu bato as minhas asas!
- Eu não estou presa, porque, cada vez que o pai de um menino – com saudade do Peter Pan – tira este livro da estante e torna a passar suas páginas, eu volto a voar. (Ziraldo, 1980, p.20-23).


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¹ IVETE LARA WALTY e outras. Palavra e imagem: leituras cruzadas. Belo Horizonte,MG:    Autêntica, 2006

terça-feira, 22 de novembro de 2011

CURA SILENCIOSA¹

A diferença entre ficar sozinha e ficar consigo mesma

Vivi recentemente uma experiência diferente, um retiro. Não, não fui para nenhum lugar especial, nem tive a orientação de nenhum mestre. Simplesmente senti necessidade de silêncio. Meu marido entendeu e viajou com as meninas, dei folga para a pessoa que nos ajuda em casa e fiquei comigo mesma por cinco dias. Descobri que tenho o poder de me curar. Que alívio.

Comecei meu retiro bem cedo, em tempo de ver o sol nascer na praia do Jabaquara, em Paraty. Fiquei um longo tempo contemplando o céu e seus tons  de rosa, vermelho e dourado, que se misturavam. Junto com o abraço quente do sol aprendi minha primeira lição: como é difícil ficar em silêncio. Sentada na areia da praia, a cabeça não parava de pensar – no que as crianças estariam pensando com a ausência da mãe, no projeto que precisava ser entregue. Respirei fundo e aceitei que a quietude viria com o tempo. Voltei caminhando para casa, descobrindo cheiros, sons, plantas, casas, montanhas, vales, canoas e serras. Ao chegar, abri o diário e comecei uma nova página, “Hábitos que quero cultivar onde quer que eu esteja”. O nascer do sol e a caminhada estavam lá, no topo da página.

Logo me vi ansiosa para escolher o que fazer depois. Uma carta com o desenho de uma mandala, oferecida por uma amiga, me mostrou o caminho: era hora de descansar corpo e mente. Entendi que não precisava fazer nada mais que dormi quando tivesse sono, comer quando sentisse fome ou simplesmente ficar quieta.

Os dias passavam e confirmavam a importância da persistência. Aos poucos ficou mais fácil meditar. Escolhi um bonito pano indiano  – que ganhei de meu sobrinho e que estava guardado no armário – para os momentos de meditação. Olhava aquele pano estendido no chão e me lembrava de que conseguia ficar em silêncio. Senti a melhor a diferença entre estar sozinha e estar comigo mesma. Vivo cercada de tantas pessoas que nos poucos momentos em que fico sozinha quero ler um livro ou assistir a um filme. Nada contra esses momentos, pelo contrário, mas é diferente de estar em contato comigo. E esse contato faz falta.

No meio dessas reflexões, encontrei um livro que coincidentemente falava sobre a importância dos retiros em culturas primitivas. Contava que, nos tempos antigos, a solidão voluntária era usada para curar a fadiga e evitar o cansaço. Mas também era usada para curar a fadiga e evitar o cansaço. Mas também era usada como um oráculo, um meio de se escutar o eu interior em busca de conselhos e orientação que, de outra forma, seriam difíceis de ouvir no burburinho do dia-a-dia. Era o meu caso.

Difícil descrever a sensação de serenidade que senti ao final do processo. Além de uma quietude interna, percebi mudanças físicas também. Como no último dia, quando meditei ouvindo um mantra. As vibrações sonoras repercutiam em todo o ambiente, comecei a cantar e, ao final, sentia cada célula do meu corpo vibrar. Repeti a experiência mais tarde e o resultado foi o mesmo. A sensação era próxima de um trabalho de cura que fiz com uma especialista, mas desta vez quem fez o trabalho de cura fui eu mesma.     


¹ SANDRA CHEMIN, publicitária. Revista Vida Simples, maio, 2007.


NO PRINCÍPIO ERA O VERBO¹

Depoimento / Lygia Fagundes Telles

Comecei a escrever quando aprendi a escrever – tinha sete, oito anos? E se falo naquele tempo descabelado, selvagem, é porque acho importante o chão da infância. Nesse chão pisei descalça, ouvindo histórias das minhas pajens, as mocinhas perdidas que eram expulsas de casa e que minha mãe recolhia para os pequenos serviços. Nesses pequenos serviços, cuidar desta filha caçula, dar banho, cortar as unhas e fazer papelotes em dias de procissão, quando eu saia com minha bata de anjo.

As histórias eram sempre de terror (o medo era necessário) com caveiras de voz fanhosa e mulas sem cabeça, as tais mulheres galopantes que se deitavam com o padre e geravam filhos normais até o sétimo, fatalmente um lobisomem. Eu só escutava, mas na noite em que também comecei a inventar, descobri que, enquanto ia falando, o medo ia diminuindo – não era eu que tremia, mas os outros, aqueles ouvintes amontoados na nossa escada de pedra, isso foi em Descalvado? A descoberta me fortaleceu: transferindo o medo que trava e avilta eu me libertava, agora era o próximo que tremia, era nele que eu projetava o medo. E o resto. Mas era cedo ainda para se falar em transferência ou catarse, na idade de ouro era apenas o instinto ensinando o caminho da inocente criação.

Algumas histórias tinham de ser repetidas, as crianças gostam das repetições, as crianças e os velhos. Mas no auge da emoção eu acabava por fundir os enredos, trocar os nomes das personagens, mudar o fim da história. Então, algum ouvinte mais atento protestava, mas essa não acabava desse jeito! A solução foi começar a escrever as histórias assim que aprendi a escrever – mas onde conseguir papel? As últimas páginas do meu caderno de escola estavam sempre em branco e foi nesses cadernos que comecei com aquela letra bem redonda a embrulhar (ou desembrulhar) os enredos, ô Deus! O que era principal e o que era acessório? E agora estou me lembrando, ah, que difícil contar a história do lenhador da floresta com a mulher e a criança, essa história fazia o maior sucesso e por isso resolvi escrevê-la, sim, contar até que era fácil, mas escrever?...




¹ LYGIA FAGUNDES TELLES. Invenção e Memória. São Paulo: Cia das Letras, 2009, página 135.

ESSES LIVROS DENTRO DA GENTE¹

(...)
O mais importante é escrever a história da sua
própria vida. Ser o escritor ou a escritora dos
seus desejos e sonhos.

    Nada impossível escrever a crônica da sua
    coragem, o conto da sua alegria, o romance da
    sua honestidade, a poesia do seu jeito de olhar
    o mundo.
...

Tem que trabalhar a memória. Gostar de lembrar
    de pessoas, casos, casas, bichos, objetos, viagens e
    reminiscências. A memória tem labirintos, portas
    trancadas, feridas abertas, mas também tem
    atalhos, pontes e asas. A memória é talvez o mais
    caro recurso do escritor.

...
Quem quer escrever, escreve. Principalmente, se
   terminou de ler um livro maravilhoso. Um livro
   maravilhoso escreve outros livros dentro da gente.
        É preciso saber ler esses livros dentro da gente.





¹ STELA MARIS REZENDE. Esses livros dentro da gente. Rio de Janeiro:Casa da Palavra, 2002.  


CALVIN

CALVIN

SOOPY

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A CONSTRUÇÃO DO OLHAR¹

As múltiplas formas de uma única questão: a criação da consciência visual


Olhar, contemplar, passa por momentos sutis: percebemos os objetos (ou paisagens), os interpretamos e classificamos num determinado contexto, para, quem sabe, por fim, recriarmos aquilo que vimos. Isso se dá o tempo todo sem que percebamos, embora o exercício de despertar o olhar, em especial para as artes visuais, seja uma questão pertinente para artistas e teóricos.


Desenvolver nossa mirada depende da família, de educadores, da sociedade, do contato com o mundo e com a arte. Ou seja: "Não se institui a formação do olhar, ela começa no momento em que passamos a enxergar. O padrão estético se constrói com base no que se vê", defende Denise Grinspum, gerente-geral do Instituto Arte na Escola, em São Paulo, e especialista em arte-educação.


Perspectiva semelhante tem o curador Paulo Sergio Duarte: "Não existe fórmula de educação do olhar. O importante é exercitar a suspensão dos preconceitos, saber que não tenho os hábitos de ler, ouvir e ver certas coisas. São os hábitos que me possuem. Se percebo essa submissão e procuro evitar as certezas que tenho, que não são minhas, mas que pertencem aos meus hábitos, posso abrir novos horizontes à percepção".


Para tanto, ele ressalta a importância das visitas regulares a museus e galerias. "Ninguém diz que gosta de literatura e só lê um ou dois livros por ano, ou que gosta de música mas só escuta de vez em quando. A música está ao alcance da mão, no  rádio, na prateleira de CDs. O livro também, pois fica na estante de casa. A obra de arte, para existir, necessita de contato com o espectador. Tenho de me deslocar ao museu, ao centro cultural; raramente a obra de arte está num canto da minha casa. Mas a repetição dessa experiência realizará a descoberta de um mundo de conhecimento."


Num ponto de vista próximo ao de Duarte, Silvio Dworecki, artista plástico e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) indica que a apreciação dos trabalhos dos artistas é fundamental. "Quem quer se expressar precisa de referências. Você pode dizer algo não só fazendo arte, mas também por meio do que observa e lembra em relação às obras que viu." Dworecki, relata os diversos procedimentos do olhar, com os quais cada um encontra sua maneira de ver o mundo: a leitura de obras de arte, o desenho de observação, de memória e do gesto são vivências importantes, afinal a percepção e a expressão formam um binômio coeso. Mas o regulador de todos esses procedimentos é a atenção: "O interesse pelo olhar, não pela obra nem pelo museu, mas, sim, em apreender o percebido". O museu, segundo Dworecki, deve ser um espaço onde se dá a continuação do olhar. O grafite é um grande estimulador dessa percepção contínua, que não isola a arte do mundo.


Claudio Mubarac, gravurista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, diz que a formação do olhar tem a ver com uma espécie de gramática visual que cada um de nós desenvolve: "Todos nós temos o poder de pensar visualmente". Também é importante entender os caminhos do trabalho do artista − técnicas, formas de expressão − pois estão intimamente ligados ao pensamento visual. "Por meio do contato direto com a oficina e seus instrumentos, compreende-se melhor o artista", diz ele, citando o exemplo de Leonardo da Vinci (1452-1519), que no início de sua trajetória usou a pena para desenhar, abandonou-a na maturidade e mais tarde a retomou. "A materialidade e a poética não se separam."


O mito da redoma
Quando o artista cria, ele pensa no olhar de seu público? Silvio Dworecki nota que "existe o mito de uma arte pura na qual o artista ficaria numa redoma e seria um pecado preocupar-se com o público". Para ele, "isso é uma balela". Porque, segundo diz, ele vive no seu tempo e suas condições dependem da relação com o mundo material. Como, por exemplo, Goya (1746-1828), pintor da corte espanhola que não abandonava sua visão crítica: "Nas pinturas ele fala dos soberanos, mas nas gravuras tem uma liberdade mais profunda".
A vida do artista não explica sua obra, porém existe uma relação entre as duas. "Mesmo os pintores das cavernas não pintaram apenas para si, mas para desenvolver rituais. Há muitas obras contemporâneas que convidam à participação do público, que pode interagir com elas. Mas às vezes só é permitido observar e, mesmo assim, o olhar garante a participação."


O que é um olhar "educado"?
"É aquele que desconfia de si próprio. A interação e a convivência contínuas com a arte fazem emergir esse olhar treinado. Um pouco de sensibilidade e alguma leitura para conhecer a história da arte ajudam muito", pondera o curador Paulo Sergio Duarte. "Olhar 'educado' é quando a pessoa tem alta exposição à arte, seja com a família, que a acompanhou em visitas a museus, seja na escola, com educadores que a estimularam", afirma Denise Grinspum.


Claudio Mubarac não gosta da expressão. "Defendo uma formação integral, que traz as artes visuais para o cotidiano. Assim, o olhar 'educado' seria conseqüência de uma formação de fato." Silvio Dworecki acompanha o questionamento de Mubarac: "Você pode conversar com pessoas simples que desconhecem a produção artística, mas têm uma cultura que permite conhecer o mundo à sua volta. O olhar 'educado' é aquele que desenvolveu a atenção para o mundo".


E como desconstruir o olhar em relação à arte contemporânea, que leva a manifestações do tipo "este monte de objetos desarrumados não é arte" ou "meu filho faria igual"? Denise Grinspum diz que a "desconstrução não é do olhar, mas da atitude. Não é fácil fruir a arte contemporânea, é preciso trabalhar experiências sensoriais, construir um novo arcabouço para compreender a arte contemporânea. O que precisamos desconstruir é o preconceito".


Uma saída para desformatar uma visão preconceituosa, nas palavras de Claudio Mubarac, é "despreocupar-se em decidir se uma obra é arte". Ele brinca, contando a história de Adão no Paraíso: "Ele pega um galho para desenhar na areia. A serpente vê o desenho e diz 'muito bonito, mas não é arte'. Então, como não cair num erro de julgamento?". Mubarac indica um caminho: "Parar de explicar e conviver com o mundo por meio da arte como forma de conhecimento, retirando-a do caráter ornamental. A arte não é a cereja do bolo, é o fermento".


A tão comum rejeição a obras abstratas e conceituais se dá, no entender de Silvio Dworecki, porque "o primeiro preconceito incutido nas pessoas é o da semelhança". Quer dizer, a arte deveria retratar fielmente seres e objetos do mundo. "Os artistas vêm lutando desde o final do século XIX pela liberdade de formas, cores e proporções, mas esse conceito ainda não chegou ao cidadão comum", reclama Dworecki. Talvez isso se dê porque a maioria das imagens que recebemos na internet, na TV e no cinema são de matriz fotográfica, com a ilusão tridimensional trazida pela perspectiva. "Desde a Renascença fomos acostumados com o olhar da câmera", diz Claudio Mubarac. "O público deve entender que instalações e performances são formas de arte que estão no território da mágica." Para completar, Dworecki ressalta que saber um pouco de história da arte é fundamental para desenvolver uma compreensão dos trabalhos de artistas contemporâneos. Afinal, como lembra Mubarac, "a arte contemporânea não está desligada da história da arte, vive em diálogo, numa teia complexa". E essa teia tece os fios do nosso olhar.

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¹ PATRÍCIA PATRÍCIO. Revista Continuum, agosto 2008, fonte: http://www.itaucultural.org.br/ .