quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO¹



Você vai começar a ler o novo romance de Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: “Não, não quero ver televisão!”. Se não ouvirem, levante a voz: “Estou lendo! Não quero ser perturbado!”. Com todo aquele barulho, talvez ainda não o tenham ouvido; fale mais alto, grite: “Estou começando a ler o novo romance de Ítalo Calvino!”. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz.
Escolha a posição mais cômoda: sentado, estendido, encolhido, deitado. Deitado de costas, de lado, de bruços. Numa poltrona, num sofá, numa cadeira de balanço, numa espreguiçadeira, num pufe. Numa rede, se tiver uma. Na cama, naturalmente, ou até debaixo das cobertas. Pode também ficar de cabeça para baixo, em posição de ioga. Com o livro, virado, é claro.
Com certeza, não é fácil encontrar a posição ideal para ler. Outrora, lia-se em pé, diante de um atril.  Era hábito permanecer em pé, parado. Descansava-se assim, quando se estava exausto de andar a cavalo. Ninguém jamais pensou em ler a cavalo; agora, contudo, a idéia de ler na sela, com o livro apoiado na crina do animal, talvez preso às orelhas dele por um arreio especial, parece atraente a você. Com os pés nos estribos, deve-se ficar bastante confortável para ler; manter os pés levantados é condição fundamental para desfrutar a leitura.
Pois bem, o que está esperando? Estique as pernas, acomode os pés numa almofada, ou talvez em duas, nos braços do sofá, no encosto da poltrona, na mesinha de chá, na escrivaninha, no piano, no globo terrestre. Antes, porém, tire os sapatos se quiser manter os pés erguidos; do contrário, calce-os novamente. Mas não fique em suspenso, com os sapatos numa das mãos e o livro na outra.
Regule a luz para que ela não lhe canse a vista. Faça isso agora, porque, logo que mergulhar na leitura, não haverá meio de mover-se. Tome cuidado para que a página não fique na sombra – um amontoado de letras pretas sobre um fundo cinzento, uniforme como um bando de ratos -; mas esteja atento para não receber uma luz demasiado forte que, ao refletir-se no branco impiedoso do papel, corroa a negrura dos caracteres como a luz do meio-dia mediterrâneo. Procure providenciar tudo aquilo que possa vir a interromper a leitura. Se você fuma, deixe os cigarros e o cinzeiro ao alcance da mão. O que falta ainda? Precisa fazer xixi? Bom, isso é com você.
(...)

________________________________________________
¹ ÍTALO CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A ODISSÉIA DO RASCUNHO¹

(...) as aparências não enganam. Aquilo e o modo como escrevemos somos nós. É a partir desta constatação objetiva, feita sobre o rascunho e sobre o trabalho que nele se realiza, que podemos aperfeiçoar-nos e aperfeiçoar o próprio estilo. O escritor argentino Adolfo Bioy Casares falava sobre este tema: “Lembro-me que, quando comecei a escrever, escrevia muito mal – meus primeiros seis livros estão entre os piores da literatura mundial -, estava sempre embaralhando teorias literárias. Um dia, deixei essa preocupação de lado, e passei a escrever de acordo com minhas convicções, permitindo que cada texto encontrasse suas regras (O Estado de São Paulo, Caderno 2, 29.04.87).

Escrevemos como somos.
(....) os defeitos da nossa personalidade são os defeitos da nossa escrita. O que fazemos quando não escrevemos reflete-se no modo como escrevemos. O que pensamos, o que olhamos, o que ouvimos, o que lemos, aquilo em que acreditamos, tudo isto se reflete no modo como escrevemos.

Mário Quintana contava que, quando menino, trabalhou na farmácia do pai durante cinco anos: “Era um trabalho de grande responsabilidade e que me foi muito útil. Naquele tempo os farmacêuticos aviavam receitas. Naturalmente o meu pai me passava as coisas que não tinham muito perigo, porque eu era guri. Eu fazia soluções que, se colocasse um pouco mais ou um pouco menos dos ingredientes, não fariam mal ao doente. O que acontecia é que o remédio ficava turvo depois. Mas eu era consciente. E atribuo a esse cuidado que eu tinha com a medida exata, o cuidado que tenho com a forma de meus versos. Atribuo o cuidado extremo com a forma da poesia de Carlos Drummond de Andrade à sua habilidade métrica, pois ele estudou farmácia. Assim como Alberto de Oliveira, que também era farmacêutico e outro dos nossos grandes parnasianos, mestre de uma arte poética no Brasil”.

O nosso exercício profissional determina boa parte do nosso estilo, do nosso vocabulário, das nossas metáforas. Por sermos engenheiros, ou por sermos sapateiros, ou por sermos pintores, ou por sermos médicos, ou por sermos bancários, escreveremos de modos diferentes. Desde o rascunho até o ponto final do trabalho estarão impressos ali os nossos hábitos profissionais, o nosso ponto de vista profissional. A nossa profissão confunde-se com o nosso ser.
(...)

____________________________________
¹ GABRIEL PERISSÉ. Ler, Pensar e Escrever. São Paulo: Arte & Ciência, 2004. 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

CANTE LÁ, QUE EU CANTO CÁ¹

Poeta, cantô da rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o sertão que é meu.
(...)
Você teve inducação
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do sertão
Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem.
(...)
Repare que a minha vida
É deferente da sua.
A sua rima pulida
Nasceu no salão da rua.
Já eu sou bem deferente,
Meu verso é como a simente
Que nasce inriba do chão;
Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte
Das obra da criação.
(...)
Seu verso é uma mistura,
É um tá sarapaté,
Que quem tem poça leitura,
Lê, mais não sabe o que é.
Tem tanta coisa incantada,
Tanta deusa, tanta fada,
Tanto mistério e condão
E ôtros negoço impossive.
Eu canto as coisa visive
Do meu querido sertão.


[1] PATATIVA DO ASSARÉ. Cante lá que eu canto cá. Petrópolis, RJ: Vozes, 1978.

sábado, 3 de dezembro de 2011

LÊGO¹




Como um filme que não cessa
retorno àquele Recife
do qual sempre fugi
mas ao qual retorno sempre
Recife das pontes
da miséria exposta
- ferida que não fecha –
Recife de minha infância
(Bandeira já disse tudo)
Dói em mim esse Recife
mesmo sem estar na parede
sempre em meu coração:
“Quando de avião sobrevoares o Recife,
lembra de mim; e quando avistares tu os rios
lembra de mim; quando voares sobre os recifes..”
diz a voz que ouço quando viajo.


__________________________________________________
¹ ELIZABETH HAZIN e outro.Lêgo & Davinovich. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.

LAN HOUSE com internet


GARFIELD


QUANDO EU VOLTAR A SER CRIANÇA¹

(... )
Nem sempre aquele com quem voltamos da escola é necessariamente nosso amigo. Pode acontecer que o amigo mora num outro bairro, de modo que os caminhos se separam logo, não dá para caminhar um pedacinho juntos. Portanto, amigo é uma coisa, e aquele com quem se gosta de voltar da escola é outra. Mas o amigo é sempre como um irmão, e até mais. Só que o irmão a gente conhece melhor, não há como se enganar. Já o amigo se faz através de palavras, você pensa que o fulano é o que ele diz que é, mas se ele for falso, pode haver engano. Ele é uma coisa na nossa frente e outra coisa diferente longe de nossos olhos: ou então diz uma coisa e faz outra. Se você tem um irmão que não é como você quer, não tem saída: pode brigar com ele, mas no fim vão ter de fazer as pazes. Já no caso do pseudo-amigo é possível separar-se para sempre.

Quando fui criança pela primeira vez, tive diversos amigos.
(...) 


¹JANUSCZ KORCZAK. Quando eu voltar a ser criança. São Paulo: Summus, 1981.