quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A CONSTRUÇÃO DO OLHAR¹

As múltiplas formas de uma única questão: a criação da consciência visual


Olhar, contemplar, passa por momentos sutis: percebemos os objetos (ou paisagens), os interpretamos e classificamos num determinado contexto, para, quem sabe, por fim, recriarmos aquilo que vimos. Isso se dá o tempo todo sem que percebamos, embora o exercício de despertar o olhar, em especial para as artes visuais, seja uma questão pertinente para artistas e teóricos.


Desenvolver nossa mirada depende da família, de educadores, da sociedade, do contato com o mundo e com a arte. Ou seja: "Não se institui a formação do olhar, ela começa no momento em que passamos a enxergar. O padrão estético se constrói com base no que se vê", defende Denise Grinspum, gerente-geral do Instituto Arte na Escola, em São Paulo, e especialista em arte-educação.


Perspectiva semelhante tem o curador Paulo Sergio Duarte: "Não existe fórmula de educação do olhar. O importante é exercitar a suspensão dos preconceitos, saber que não tenho os hábitos de ler, ouvir e ver certas coisas. São os hábitos que me possuem. Se percebo essa submissão e procuro evitar as certezas que tenho, que não são minhas, mas que pertencem aos meus hábitos, posso abrir novos horizontes à percepção".


Para tanto, ele ressalta a importância das visitas regulares a museus e galerias. "Ninguém diz que gosta de literatura e só lê um ou dois livros por ano, ou que gosta de música mas só escuta de vez em quando. A música está ao alcance da mão, no  rádio, na prateleira de CDs. O livro também, pois fica na estante de casa. A obra de arte, para existir, necessita de contato com o espectador. Tenho de me deslocar ao museu, ao centro cultural; raramente a obra de arte está num canto da minha casa. Mas a repetição dessa experiência realizará a descoberta de um mundo de conhecimento."


Num ponto de vista próximo ao de Duarte, Silvio Dworecki, artista plástico e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) indica que a apreciação dos trabalhos dos artistas é fundamental. "Quem quer se expressar precisa de referências. Você pode dizer algo não só fazendo arte, mas também por meio do que observa e lembra em relação às obras que viu." Dworecki, relata os diversos procedimentos do olhar, com os quais cada um encontra sua maneira de ver o mundo: a leitura de obras de arte, o desenho de observação, de memória e do gesto são vivências importantes, afinal a percepção e a expressão formam um binômio coeso. Mas o regulador de todos esses procedimentos é a atenção: "O interesse pelo olhar, não pela obra nem pelo museu, mas, sim, em apreender o percebido". O museu, segundo Dworecki, deve ser um espaço onde se dá a continuação do olhar. O grafite é um grande estimulador dessa percepção contínua, que não isola a arte do mundo.


Claudio Mubarac, gravurista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, diz que a formação do olhar tem a ver com uma espécie de gramática visual que cada um de nós desenvolve: "Todos nós temos o poder de pensar visualmente". Também é importante entender os caminhos do trabalho do artista − técnicas, formas de expressão − pois estão intimamente ligados ao pensamento visual. "Por meio do contato direto com a oficina e seus instrumentos, compreende-se melhor o artista", diz ele, citando o exemplo de Leonardo da Vinci (1452-1519), que no início de sua trajetória usou a pena para desenhar, abandonou-a na maturidade e mais tarde a retomou. "A materialidade e a poética não se separam."


O mito da redoma
Quando o artista cria, ele pensa no olhar de seu público? Silvio Dworecki nota que "existe o mito de uma arte pura na qual o artista ficaria numa redoma e seria um pecado preocupar-se com o público". Para ele, "isso é uma balela". Porque, segundo diz, ele vive no seu tempo e suas condições dependem da relação com o mundo material. Como, por exemplo, Goya (1746-1828), pintor da corte espanhola que não abandonava sua visão crítica: "Nas pinturas ele fala dos soberanos, mas nas gravuras tem uma liberdade mais profunda".
A vida do artista não explica sua obra, porém existe uma relação entre as duas. "Mesmo os pintores das cavernas não pintaram apenas para si, mas para desenvolver rituais. Há muitas obras contemporâneas que convidam à participação do público, que pode interagir com elas. Mas às vezes só é permitido observar e, mesmo assim, o olhar garante a participação."


O que é um olhar "educado"?
"É aquele que desconfia de si próprio. A interação e a convivência contínuas com a arte fazem emergir esse olhar treinado. Um pouco de sensibilidade e alguma leitura para conhecer a história da arte ajudam muito", pondera o curador Paulo Sergio Duarte. "Olhar 'educado' é quando a pessoa tem alta exposição à arte, seja com a família, que a acompanhou em visitas a museus, seja na escola, com educadores que a estimularam", afirma Denise Grinspum.


Claudio Mubarac não gosta da expressão. "Defendo uma formação integral, que traz as artes visuais para o cotidiano. Assim, o olhar 'educado' seria conseqüência de uma formação de fato." Silvio Dworecki acompanha o questionamento de Mubarac: "Você pode conversar com pessoas simples que desconhecem a produção artística, mas têm uma cultura que permite conhecer o mundo à sua volta. O olhar 'educado' é aquele que desenvolveu a atenção para o mundo".


E como desconstruir o olhar em relação à arte contemporânea, que leva a manifestações do tipo "este monte de objetos desarrumados não é arte" ou "meu filho faria igual"? Denise Grinspum diz que a "desconstrução não é do olhar, mas da atitude. Não é fácil fruir a arte contemporânea, é preciso trabalhar experiências sensoriais, construir um novo arcabouço para compreender a arte contemporânea. O que precisamos desconstruir é o preconceito".


Uma saída para desformatar uma visão preconceituosa, nas palavras de Claudio Mubarac, é "despreocupar-se em decidir se uma obra é arte". Ele brinca, contando a história de Adão no Paraíso: "Ele pega um galho para desenhar na areia. A serpente vê o desenho e diz 'muito bonito, mas não é arte'. Então, como não cair num erro de julgamento?". Mubarac indica um caminho: "Parar de explicar e conviver com o mundo por meio da arte como forma de conhecimento, retirando-a do caráter ornamental. A arte não é a cereja do bolo, é o fermento".


A tão comum rejeição a obras abstratas e conceituais se dá, no entender de Silvio Dworecki, porque "o primeiro preconceito incutido nas pessoas é o da semelhança". Quer dizer, a arte deveria retratar fielmente seres e objetos do mundo. "Os artistas vêm lutando desde o final do século XIX pela liberdade de formas, cores e proporções, mas esse conceito ainda não chegou ao cidadão comum", reclama Dworecki. Talvez isso se dê porque a maioria das imagens que recebemos na internet, na TV e no cinema são de matriz fotográfica, com a ilusão tridimensional trazida pela perspectiva. "Desde a Renascença fomos acostumados com o olhar da câmera", diz Claudio Mubarac. "O público deve entender que instalações e performances são formas de arte que estão no território da mágica." Para completar, Dworecki ressalta que saber um pouco de história da arte é fundamental para desenvolver uma compreensão dos trabalhos de artistas contemporâneos. Afinal, como lembra Mubarac, "a arte contemporânea não está desligada da história da arte, vive em diálogo, numa teia complexa". E essa teia tece os fios do nosso olhar.

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¹ PATRÍCIA PATRÍCIO. Revista Continuum, agosto 2008, fonte: http://www.itaucultural.org.br/ .

Um comentário:

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