terça-feira, 22 de novembro de 2011

NO PRINCÍPIO ERA O VERBO¹

Depoimento / Lygia Fagundes Telles

Comecei a escrever quando aprendi a escrever – tinha sete, oito anos? E se falo naquele tempo descabelado, selvagem, é porque acho importante o chão da infância. Nesse chão pisei descalça, ouvindo histórias das minhas pajens, as mocinhas perdidas que eram expulsas de casa e que minha mãe recolhia para os pequenos serviços. Nesses pequenos serviços, cuidar desta filha caçula, dar banho, cortar as unhas e fazer papelotes em dias de procissão, quando eu saia com minha bata de anjo.

As histórias eram sempre de terror (o medo era necessário) com caveiras de voz fanhosa e mulas sem cabeça, as tais mulheres galopantes que se deitavam com o padre e geravam filhos normais até o sétimo, fatalmente um lobisomem. Eu só escutava, mas na noite em que também comecei a inventar, descobri que, enquanto ia falando, o medo ia diminuindo – não era eu que tremia, mas os outros, aqueles ouvintes amontoados na nossa escada de pedra, isso foi em Descalvado? A descoberta me fortaleceu: transferindo o medo que trava e avilta eu me libertava, agora era o próximo que tremia, era nele que eu projetava o medo. E o resto. Mas era cedo ainda para se falar em transferência ou catarse, na idade de ouro era apenas o instinto ensinando o caminho da inocente criação.

Algumas histórias tinham de ser repetidas, as crianças gostam das repetições, as crianças e os velhos. Mas no auge da emoção eu acabava por fundir os enredos, trocar os nomes das personagens, mudar o fim da história. Então, algum ouvinte mais atento protestava, mas essa não acabava desse jeito! A solução foi começar a escrever as histórias assim que aprendi a escrever – mas onde conseguir papel? As últimas páginas do meu caderno de escola estavam sempre em branco e foi nesses cadernos que comecei com aquela letra bem redonda a embrulhar (ou desembrulhar) os enredos, ô Deus! O que era principal e o que era acessório? E agora estou me lembrando, ah, que difícil contar a história do lenhador da floresta com a mulher e a criança, essa história fazia o maior sucesso e por isso resolvi escrevê-la, sim, contar até que era fácil, mas escrever?...




¹ LYGIA FAGUNDES TELLES. Invenção e Memória. São Paulo: Cia das Letras, 2009, página 135.

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